CORONAVÍRUS – No Limite, Furacão e o Caos Social

Há algum tempo fiz amizade com uma finalista de um programa de televisão chamado No Limite. Para quem não chegou a conhecer, se tratava de um reality show onde um grupo de pessoas era colocado em uma região selvagem, desprovidas de qualquer conforto, enquanto participavam dia e noite de provas de resistência. Lembro que eles próprios construiam suas barracas com folhas, ou dormiam ao relento, comiam insetos, matavam galinhas com as próprias mãos e só tinham um muda de roupa para toda estadia.
Lembro que cheguei a assistir o programa com minha esposa e filha recém nascida. Gostava de ver como pessoas jovens e urbanas conseguiam conviver num ambiente tão desafiador como o da natureza virgem, apesar de contar com a supervisão distante da equipe de gravação. Por isso perguntei a minha nova amiga por que o programa deixou de ser produzido. Ela me respondeu que foi devido ao risco que os participantes eram expostos, o que se tornava uma “liability” para a emissora. Ela me explicou que um participante quase se afogou logo no início do programa quando foi obrigado em uma das provas a nadar em mar aberto.
Em 2005, após a destruição causada pelo furacão Katrina, a empresa para quem eu trabalhava mobilizou uma embarcação  para agir de forma emergencial no reparo e reconstrução de dutos e plataformas de petróleo danificadas pelo furacão. Durante a missão fomos atingidos em cheio pelo segundo furacão, o Rita, com mais de 150 pessoas a bordo, em um porto próximo a Lake Charles, na Louisiana.
O pânico trazido pela iminência da chegada do furacão fez com que as prateleiras de supermercados fossem esvaziadas de um dia para o outro. Gente civilizada e educada podia ser vista brigando por um galão d’água ou um pacote de pão. Multidões tentavam escapar ao mesmo tempo, sobrecarregando até mesmo as auto estradas de seis ou sete pistas, todas orientadas para a mesma direção na ocasião. Pelo caminho podia observar centenas de carros parados por falta de combustível, crianças, adultos e idosos sentados à beira da pista num cenário que de nada parecia com a realidade do país mais rico do mundo.
Num segundo momento, após o furacão atingir a cidade, pude observar a rapidez com que o caos social se instala. Com o fechamento dos acessos à cidade por causa das enchentes, faltava combustível para fugir e pessoas passando fome. Presenciei cenas como a de um homem apontando arma para outro que tentou furar a fila do posto de gasolina. O governo e os cidadãos de áreas não atingidas precisando reagir rapidamente em sintonia com o ditado de que “a civilização está a vinte e quatro horas e duas refeições do barbarismo”.
Furacões e No Limite, me mostram por um lado o quanto a civilização é frágil e, por outro, o quanto nós humanos nos tornamos dependentes dela.
A mão invisível construiu uma sociedade complexa, interligada e co-dependente. De maneira geral, essa interligação gerou riqueza e reduziu a miséria aos níveis mais baixos da história da humanidade. Contudo, justamente devido a essa co-dependência que uma ruptura nas relações entre os indivíduos me assusta tanto. O momento histórico que vivemos me faz lembrar o quão frágil nossa civilização é e quão próximos ao caos nós estamos.
No dia 8 de março passado, enquanto sobrevoava o Atlântico rumo à Noruega, tive acesso, através da rede wi-fi do avião, que as bolsas de valores da Asia abriram em forte queda. O preço do barril de petróleo havia caído quase 50% e apresentava indícios de que continuaria a cair. Dois dias depois, ainda a trabalho, embarquei para uma visita num navio de construção offshore e no dia 11, ao retornar ao continente, nos Países Baixos, percebi que o mundo já havia mudado. Em visita à sede da empresa em que trabalho, cheguei a zombar da nova política da empresa que havia havia proibido o aperto de mãos.
Acordei no dia seguinte com a notícia de que os Estados Unidos haviam fechado os aeroportos para voos vindos da Europa. Imediatamente cancelei a próxima viagem que faria aos Estados Unidos e antecipei meu retorno ao Brasil para uma quarentena que já dura 18 dias.
Na segunda-feira, dia 16, meu primo me enviou uma foto de seu restaurante vazio com o título: “Quebrei”. Aquele era apenas o primeiro dia, mas já indicava o que estava por vir. Da sexta-feira para a segunda, seu faturamento caiu 100%. “Não vou ter como pagar sessenta empregados no final do mês”.
A indústria da hospitalidade entrou em coma literalmente da noite para o dia. Outros amigos, pequenos ou médios empresários dessa indústria – que inclui entretenimento, hotéis, restaurantes e turismo – discordam somente quanto o tempo que levarão para anunciar a mesma coisa: “não terei como pagar mais meus funcionários”.
Empresas, seus funcionários e profissionais liberais são a mola mestra da sociedade, mas nesse momento eles precisam engolir qualquer que seja a sugestão que venha tentar prevenir a morte de suas empresas para não serem taxados de gananciosos e insensíveis. Afinal de contas – argumentam os ungidos da bondade – a vida vale mais do que a economia.
Me espanta constatar a ignorância de muitos quanto a forma como um governo se sustenda ou até da origem de seus próprios vencimentos. Quanto mais distantes estão da fonte geradora de riqueza, mais acreditam que é obrigação do governo resolver o problema de forma simples, através da distribuição infinita do dinheiro que ele mesmo imprime! Gente bem educada e inteligente ignora o fato de que são os profissionais autônomos e os pequenos e médios empresários que pagam o funcionalismo público e que possibilitam ao governo prestar assistência aos necessitados e a agir em momentos de emergência como esse que estamos vivendo.
A verdade é que não se trata de vida versus economia. Trata-se de vidas versus vidas, a economia é somente uma ciência que nos ajuda a antecipar problemas de origem social como a escassez, a miséria e a fome. O governo é somente o agente desta ciência.
Fico triste em perceber o risinho escondido de gente pública, jornalistas e amigos pessoais que enxergam nesse caos uma grande oportunidade de derrota dos seus “inimigos”, seja o sistema capitalista, seja a direita, seja o Presidente da República. O tom de excitação – quase euforia – em que patrulham qualquer tentativa de se minimizar o impacto do incêndio que eventualmente vai nos consumir a todos é sádico.
Ver um criminoso como Lula se auto promover sob os holofotes da mídia sedenta pela queda do presidente me soa tão absurdo que me faltam palavras para expressar minha descrença. Ainda ontem ele trocou afagos com o  governador de São Paulo pela atitude grandiosa de invadir uma empresa e saquear produtos médicos. Será que ninguém enxerga o autoritarismo explícito num gesto que sai da mesma gente que acusa o presidente de ser um ditador? Será que é difícil enxergar o oportunismo em se usar uma pandemia global como como meio de implementar a ditadura que sempre sonhou, apoiou, e que matou mais do que qualquer vírus ou guerra na história da humanidade.
Com todos os defeitos que enxergamos em nossa civilização, uma coisa é certa: destruí-la é muito mais fácil do que foi construí-la. Minha amiga do “No Limite” me fez pensar no quanto é arriscado voltarmos à natureza que – por mais que queiramos enxergá-la de forma romântica – trabalha incansavelmente para nos destruir. O Corona está aí para nos provar.
Eu acredito que é a civilização moderna que irá nos salvar. Isso se não destruirmos com ela antes.
André Luis Jucá de Melo
Alagoano e cidadão do mundo
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